Poesia

Bastante aos gritos (2021)

Bastante aos gritos

“Componho um mantra desafinado” – Cesar Garcia Lima escreve, no poema “Mais calado”. Bastante aos gritos, este seu quarto poemário, poderia ser lido com os ouvidos: há os gritos do título, nunca bastantes ante a barbárie destes dias; há um mantra desafinado, a “eloquência de quem cala” (“O silêncio de Cristo”), o “Coral” das vozes que “vêm de longe / vêm de dentro / vêm do além”. 

O poeta escreve num Brasil de “dias nublados / em que o mal se confunde com mandato” (“Duplo”). O grande luto vivido hoje vem no descolamento mesmo de “um iceberg / feito de floresta” que “desce o rio / em busca do infinito” (“Balseiro”). Mas a matança em curso não é somente de gente, bicho, iceberg e floresta. É também do próprio saber, do poder saber, do poder dizer e do querer fazê-lo. Numa caminhada pelo campus, no “Noturno do Gragoatá”, o professor se pergunta: “Existirão alunos na próxima semana? / Existirei na próxima semana?”. 
Neste mundo aos gritos, a poesia reitera sua capacidade de estar junto da dor, sem desviar os olhos ou tampar os ouvidos. “Continuar sempre demora” (“Anotação”), mas continuar é da função da vida. Em “Rota”, a exortação: “sacar do bolso / o mapa-múndi / única arma de fogo / ao meu alcance”. Pensemos não tanto na suposta liberdade da viagem, espécie de rota de fuga, mas na aposta na integridade do mundo: um mapa-múndi capaz de acolher a todos, humano, planta, iceberg e bicho. Na poesia – essa forma curiosa de existência que, como “a vitória-régia de Amsterdã” (“Vocação”), suporta tudo (suportar: ter sobre si) –, reside o avesso do desespero e da impotência: “ter o espírito repleto de navios” (“Barco”), porque também disso se trata. Pois há mantras, afinal, ainda que desafinados – promessas em meio aos gritos. Poemas contra o mandato do mal. Assim prometem os versos inaugurais de Bastante aos gritos: “Deixe o medo perder / a força. / O espírito se eleva. / O tempo não tem portas. / Erga o olhar até o sol.”

Adriana Lisboa